Imaginem uma situação: na "periferia da periferia" de uma grande cidade brasileira, nasce uma criança. O pai desaparece, e a mãe o abandona. O menino cresce sendo criado pela avó, que com certeza já não dá mais conta de ser enérgica com uma criança como fora há 20 anos atrás com os próprios filhos. Apesar de ter sido, como disse, criado pela avó, aprendeu tudo o que sabe na rua, com amigos que provavelmente são tão ou mais pobres, tão ou mais abandonados que ele. Ia pra escola para ver os amigos e para comer a merenda, refeição mais completa do seu dia. Esta história é muito comum, eu mesmo já tive vários amigos que tinham uma vida parecida.
Um dia, este menino decide gastar seu único real para fazer uma aposta na Mega-Sena, com a esperança que só as crianças tem. E é sorteado, e consegue mudar a sua vida e a vida dos seus amigos, que continuam os mesmos de antes, da época de pobreza. E se torna poderoso, e vai ganhando cada vez mais dinheiro, e cada vez mais cheio de amigos, e claro, cercando-se de muitos aproveitadores.
Esta é a história do goleiro Bruno Fernandes, tirando-se a parte do bilhete premiado. Na verdade, ao invés de um jogo de loteria, ele tinha um talento incontestável para o futebol, o que lhe deu a única chance que teve na vida. E soube aproveitar a chance, se tornando goleiro do galo e depois do flamengo, sendo capitão do time campeão brasileiro de 2009.
Porém, sempre se envolve em polêmicas, e sua imagem está sempre associada às confusões envolvendo principalmente mulheres. Em 2010 foi preso acusado de um assassinato que teve todos os requintes de crueldade possíveis, segundo a polícia. Não quero falar aqui se é verdade ou não, se o goleiro é culpado ou não, dar detalhes do crime, etc...
Bruno ainda não foi julgado. Mas já foi condenado. O flamengo já disse que ele não volta ao gol rubro-negro, mesmo se for absolvido. Abandonou o seu atleta. Não conseguirá, provavelmente, nenhum time para jogar, se provar a sua inocência, e não sabe fazer outra coisa a não ser jogar futebol.
Como muitos outros, Bruno já nasceu condenado. Condenado ao abandono dos pais, abandono do Estado, sem educação. Existem milhares de brunos no Brasil, que não tem nem a chance de fracassar como o goleiro, pois não tiveram nenhuma chance de tentar.
A mulher, suposta vítima de Bruno, têm uma história parecida. Abandonada pelos pais, sozinha no mundo, conseguiu algumas chances de trabalhar utilizando o seu corpo, a sua beleza. Foi modelo, atriz, acompanhante, e viu a chance de alcançar seus 15 minutos de fama envolvendo-se com jogadores famosos. Assim como os brunos, não teve família nem outras chances de conquistar alguma coisa, ou alcançar um sonho.
A mídia, tão podre e desonesta como é de seu costume, faz da cobertura do caso um misto de circo de horrores com trem fantasma. Advogados, delegados, juízes, apresentadores, todos buscando o seu cantinho nos holofotes. O que menos importa é a vida dos acusados e da vítima, e sim qual a audiência será alcançada ao se inventar mais um furo, mais uma novidade, mais uma notícia bombástica sobre o caso.
Estamos construindo um país de brunos e elisas, não interessa se as crianças se chamam Josimar, Cristiano, Daniel, Flávia*... o nome é o que menos importa, para quem não é considerado, em momento nenhum como gente de verdade.
O ser humano é descartável no Brasil. O caso Bruno, assim como o ônibus 174, no Rio, assim como o carandiru, assim como o caso Nardoni, assim como o caso da menina presa com homens no Pará, assim como o caso da cadeia incendiada com gente dentro no interior de minas, assim como o caso da candelária, assim como o índio Galdino, assim como muitos outros casos de violência extrema só provam o que eu quero dizer. Enquanto existirem brunos no País, jamais teremos paz. Nem eles.
*são alguns brunos que eu conheci, que foram assassinados. Quando uma pessoa puxa o gatilho, não está sozinha. Toda a sociedade é co-responsável por qualquer morte violenta.
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